Impedida de exercer o cargo de juíza, Ludmila Lins Grilo afirma que não vai recorrer da decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que impôs a ela a aposentadoria compulsória. Magistrada há 10 anos, ela diz que, no atual momento histórico do Brasil, não acredita mais na Justiça. “É óbvio que a Justiça não vai funcionar adequadamente em um ambiente ditatorial criado pela própria Justiça”, diz Ludmila nesta entrevista à Gazeta do Povo.
Na conversa, realizada na última sexta-feira (26), um dia após a punição, ela esclareceu os motivos que levaram os desembargadores do Órgão Especial do TJ-MG a tomar a medida, a mais drástica possível contra um magistrado: “crimes de opinião”. Ludmila foi punida por manifestações no Twitter e por causa de uma palestra em 2019 em que criticava o ativismo judicial e a influência de organismos internacionais sobre o Judiciário no Brasil.
Em fevereiro, ela já havia sido afastada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sobretudo em razão de críticas mordazes que faz desde 2019 ao inquérito das fake news, do Supremo Tribunal Federal (STF). Na época, os membros do CNJ também apontaram suposto “desleixo” na condução da Vara Criminal e de Infância e Juventude de Unaí (MG), onde ela atua. Ela nega essa acusação e diz ter provas de que tudo funcionava bem no trabalho.
Mantém, de qualquer modo, as críticas ao Judiciário. Ela afirma que falta coragem à maioria dos colegas para denunciar a “destruição do ordenamento jurídico” e que, no futuro, quem a condenou terá de carregar a mácula de ter sido conivente com o “ambiente ditatorial criado pela própria Justiça no país”.
Sobre os planos para o futuro, Ludmila não revela detalhes, mas diz que continuará atuando no âmbito cultural. A juíza destaca também que nunca quis entrar para a política e que agora isso nem seria possível, em razão da punição. Abaixo, a entrevista completa.
Como você recebeu essa notícia da aposentadoria compulsória?
Ludmila Lins Grilo: “Eu estou bem, não se preocupem comigo. Mas a Justiça no Brasil é que não está bem. E acho que ela, nesse momento, é que demanda maiores preocupações. Eu fiz o que estava ao meu alcance, mas o resultado foi esse aí, lamentável. O que aconteceu não desacontece. Já existe essa mácula, essa mancha, pelo menos na Justiça mineira”.
Em fevereiro, você já havia sido afastada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), muito em razão das críticas feitas ao inquérito das fake news, em entrevistas, nas redes sociais e no livro“Inquérito do Fim do Mundo”. O que motivou essa nova decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais? Em geral, essa medida é tomada contra juízes envolvidos em corrupção, venda de sentenças, etc.
Ludmila Lins Grilo: “Esse processo que ensejou a pena máxima da magistratura não teve nada a ver com a atividade judicante em si. Foram três alegações, todas relacionadas a “crime de opinião” ou liberdade de expressão.
O primeiro fato foi uma manifestação que eu fiz no Twitter sobre a audiência de custódia, que eles [desembargadores do TJ-MG] disseram que foi “grosseira e desequilibrada”. Quem acompanha meus posicionamentos sabe muito bem que eu sempre fui e continuo sendo radicalmente contra a existência desse instituto jurídico. Que começou errado, sem lei. Quem instituiu foi o CNJ por uma resolução. E como a gente sabe, o CNJ não é legislador, portanto, não pode estabelecer procedimento em processo penal. Mas foi assim que começou, muito mal. E eu sempre fui crítica desse instituto, até na qualidade de professora e escritora. Isso está dentro da minha liberdade de expressão e acho que eu tenho todo o direito de fazer isso.
A segunda imputação foi uma palestra que eu dei em 2019 no Palácio do Itamaraty, em Brasília, num evento promovido pela Fundação Alexandre de Gusmão, a Funag, sobre globalismo. A fundação é vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, e o ministro era o Ernesto Araújo, que inclusive foi um dos palestrantes. Não era uma palestra minha, sozinha, eu era uma das palestrantes de um evento que contava com vários outros. E a minha palestra foi como os organismos internacionais violam nossa soberania, fazendo suas regras entrarem no nosso ordenamento jurídico. Eu concluí dizendo o que iria acontecer nos próximos anos no Brasil: como que apenas um pequeno grupo de burocratas composto por 11 pessoas – eu fiz menção expressa ao STF – iria tomar o poder no Brasil. Tudo que eu falei aconteceu.
E vale ressaltar que o próprio CNJ tem uma norma administrativa que considera palestra como atividade de magistério. Então, quando você tem uma professora palestrante, exercendo livremente a sua atividade de magistério e tem o seu conteúdo censurado dessa forma, uma censura posterior – porque eu acabei por conta do conteúdo daquela palestra, perdendo o meu cargo –, isso me parece muito grave. Não é mais seguro você exercer o magistério livremente. A liberdade de cátedra, pelo menos do juiz, está sob perigo.
E o terceiro fato foi o “uso desmedido” das redes sociais, “opiniões depreciativas, debochadas e ofensivas”. Citam vários pequenos episódios, por exemplo, um bate-boca no perfil de um advogado. Um advogado lá fez uma provocação, me ofendeu, eu fui lá e me defendi. Segundo eles, eu não deveria fazer isso, porque eu estaria sendo ofensiva. Na cabeça deles, eu deveria sofrer as ofensas calada. Me deixar ser imolada como um cordeiro, o que não me parece muito digno. Então, foi isso: bate-boca com advogado e uso de memes. A minha linguagem que é essencialmente irônica, sarcástica, eu faço uso desse tipo de procedimento linguístico, de figura estilística. Eles também consideraram como sendo inadequada e falta de decoro”.
Existe alguma iniciativa para condená-la na Justiça à demissão, com a perda também da aposentadoria?
Ludmila Lins Grilo: “Não. Isso poderia acontecer se houvesse condenação por crimes graves. Mas eu não tenho processos penais contra mim. O Judiciário bem que tentou [me incriminar]. O Tribunal de Justiça de Minas tentou me acusar por causa do episódio em que eu andei num shopping tomando sorvete com a máscara pendurada na orelha, e falei que o vírus não gosta de sorvete. Ali, eu estava ironizando as regras sanitárias, que a meu ver eram estapafúrdias. Houve decisões autorizando o Ministério Público a abrir investigação por crime sanitário e incitação ao crime. Enfim, o tribunal tentou de tudo para tentar jogar um crime nas minhas costas, mas o Ministério Público bloqueou e num parecer muito bom falou que o Judiciário até poderia apurar se houve violação a alguma norma administrativa, [de quebra de] decoro do cargo, mas crime não tem, e requereu o arquivamento”.