Essa informação é reservada, de registro interno do INSS, e não pode sequer ser publicada no Diário Oficial da União (DOU). As instituições conseguem saber detalhes do contracheque do idoso, endereço residencial e telefone. De posse dos dados, iniciam uma ofensiva que, conforme a delegada da Polícia Civil Cristiane Ramos, da Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso, pode ser enquadrada como “perturbação de tranquilidade”, prevista na lei das contravenções penais.

Para o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o assédio aos aposentados passa a evidenciar uma situação de maior gravidade quando são acessadas informações sigilosas, que deveriam ser resguardadas pelo INSS.

— Infringe a lei geral de dados pessoais, configura quebra de sigilo bancário. O idoso forma uma população vulnerável e essas práticas geram superendividamento, abrem precedente para muitas fraudes, operações não reconhecidas pelos aposentados, empréstimos não autorizados ou em duplicidade. Também há casos de consignados já quitados, mas que as financeiras não param de descontar. São inúmeras situações — alerta Ione Amorim, economista do Idec.

Investigação interna no INSS

INSS aponta a existência de falhas na proteção aos dados, armazenados pelo seu braço operacional, a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev). O descontrole levou o próprio INSS abrir uma investigação interna, com apoio do Ministério Público e da Polícia Federal, para averiguar possíveis vazamentos de dentro da instituição. Um dos focos é descobrir como as financeiras ficam sabendo da concessão do benefício antes mesmo do recém-aposentado.

“As informações dos segurados são sigilosas. Nem os servidores e nem mais ninguém tem autorização para repassar. (…)”

O instituto reconhece que, no processo de tramitação de requerimento do segurado, é possível que exista o vazamento indevido de informações. Em nota, a instituição afirma que “trabalhará de forma intensa para coibi-lo”.

O consignado é uma das preferências das instituições de crédito. O desconto em folha é a certeza de pagamento e o aposentado não corre risco de corte de renda, diferente do trabalhador da ativa que pode ficar desempregado. A segurança na operação é tamanha que permite a adoção de juro mais baixo. Os efeitos desta corrida atrás dos segurados são sentidos na vida real.

“Não vai ter como ele (aposentado) saber”

Em junho de 2018, Esmeralda Kiefer, 58 anos, encaminhou o pedido de aposentadoria na agência do INSS da Avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre.

Eu nem tinha sido avisada pelo INSS. Descobri que estava aposentada quando as ligações inundaram meu celular.

ESMERALDA KIEFER

Aposentada

— Os telefonemas oferecendo crédito consignado começaram em dezembro de 2018. Eu nem tinha sido avisada pelo INSS. Descobri que estava aposentada quando as ligações inundaram meu celular. Nos primeiros telefonemas, quando eu questionava como eles sabiam e eu não, me respondiam que a informação da minha aposentadoria tinha saído no Diário Oficial — relata Esmeralda.

O discurso das financeiras, entretanto, é enganoso — os dados não podem ser divulgados publicamente.

Entre as dezenas de contatos recebidos, incluindo uma incômoda ligação às 5h da manhã, Esmeralda foi procurada de diferentes formas pela Tifim Crédito. A financeira enviou mensagem por WhatsApp para o número pessoal de Esmeralda e, além disso, remeteu pelo correio uma carta direcionada a ela. A Tifim sabia o telefone, o endereço e dados do benefício da aposentada.

Reprodução / Agência RBS

“Faça seu empréstimo sem sair de casa, levamos o contrato até você”, dizia a carta da Tifim, que se anuncia como correspondente autorizado dos bancos Itaú e BMG, cujas marcas estampavam a correspondência. A reportagem foi até a loja da Tifim, um pequeno escritório na Rua 24 de Outubro, em Porto Alegre, onde trabalham três pessoas.

No local, informamos o desejo de fazer uma consulta de viabilidade de crédito consignado em nome de uma terceira pessoa aposentada que não estava presente e supostamente emprestaria seu nome para a realização de um financiamento. O repórter perguntou se era possível fazer simulações e quais documentos do aposentado precisariam ser apresentados para a checagem dos dados.

— Só o CPF — respondeu uma pessoa que trabalha na Tifim.

Apenas com o número do CPF do beneficiário anotado em um pequeno papel, foram acessadas informações em um notebook.

A Tifim logo verificou o nome do aposentado, o valor do seu contracheque mensal e os eventuais descontos existentes. No ato, saiu uma proposta de empréstimo de R$ 34 mil a ser pago em 72 vezes. A reportagem disse que iria apresentar a proposta ao titular do CPF e da aposentadoria, com a promessa de dar retorno.

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No dia seguinte, os contatos ocorreram por WhatsApp. A Tifim queria inserir no sistema do INSS, o Dataprev, o pedido de empréstimo mesmo sem o consentimento do titular. O repórter explicou que ainda não tinha recebido autorização do aposentado e que, por isso, era preciso aguardar.

— Se eu solicitar agora, não vai ter como ele (aposentado) saber porque até averbar, vai ser segunda ou terça, quando acontece o pagamento. Antes precisa anexar o RG no sistema. Já deixo em andamento para não demorar mais o pagamento. Se ele desistir, eu cancelo a proposta — disse um funcionário da Tifim.

Depois de reiterados pedidos, a correspondente bancária concordou em aguardar pela resposta do titular do CPF, que acabou sendo negativa, com a negociação interrompida.

Ouça o contato com o funcionário da Tifim:

Consultas, simulações e encaminhamentos de crédito consignado por terceiros, que portam o número de CPF de um aposentado, estão entre as fontes de fraudes em empréstimos com desconto em folha.

“Não é permitido que uma terceira pessoa realize esse procedimento, nem com procuração. A única maneira é quando o representante legal apresenta alvará judicial que lhe conceda poderes para fazer consultas, simulações e, inclusive, autorizar o crédito. Caso não seja cumprida essa exigência, a instituição sofrerá sanções”, explicou o órgão.

Por vezes, os idosos também são levados a assinar contratos de empréstimo sem saber exatamente do que se trata, seduzidos pelo discurso de que “tem direito a um crédito do INSS”, cantilena costumeiramente repetida por representantes bancários.

— As financeiras não estão tendo responsabilidade social. Muitos idosos afirmam que não queriam ou não contrariam o empréstimo, mas eles são considerados hipervulneráveis, entram nisso por desconhecimento. Não sabem o que estão assinando, não perguntam nada. E as financeiras fazem qualquer negócio para fechar contrato. Pegam um carro e levam o contrato para o idoso assinar dentro de casa, seja lá onde for — diz Maria Elisabeth Pereira, diretora do Procon-RS.

Acesso a documento sigiloso e consignado via WhatsApp

A reportagem ainda visitou cinco financeiras no Centro de Porto Alegre. Em duas delas, foi corretamente informado que um terceiro não pode fazer consultas em nome de outra pessoa aposentada. Os atendentes disseram que é necessário, antes de dar andamento ao empréstimo, fazer uma pré-autorização pela internet — trata-se de um desbloqueio que foi determinado por nova resolução do INSS sobre crédito consignado.

As outras três visitadas, contudo, fizeram consultas e acessaram dados com a apresentação de um CPF de uma pessoa que não estava presente. Isso ocorreu na AneCred, que oferece empréstimos consignados e assessoria jurídica em um escritório no 13º andar de um prédio na Avenida Borges de Medeiros, no Centro de Porto Alegre.

A reportagem informou portar o CPF de um homem com o intuito de fazer uma simulação de crédito. A atendente mencionou a necessidade de o titular fazer o procedimento de pré-autorização, mas, ainda assim, partiu para uma consulta não autorizada. Depois de trocar algumas informações com um interlocutor pela internet, para quem forneceu o número do CPF, recebeu de volta um “extrato de pagamentos”, documento que traz todas as informações do aposentado.

A página foi impressa e, no seu pé, constava o endereço virtual do Dataprev, o que indica que ela foi emitida a partir do sistema do INSS. No extrato entregue pela AneCred a um terceiro constavam dados como o número do benefício, o tipo de aposentadoria, a agência bancária do pagamento e o valor bruto, líquido e os descontos do contracheque. Pelas normas do INSS, o extrato de pagamentos é um serviço que só pode ser acessado pelo cidadão titular do benefício.

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Na AneCred, o documento foi emitido para um terceiro e, no papel, foi anotada com caneta uma proposta de empréstimo consignado de R$ 35,2 mil, parcelado em 72 vezes.

Mesmo com a importância do tema, os procedimentos de parte das financeiras são informais. A BrCred, por exemplo, um “call center” que se declara correspondente de bancos como Itaú e Bradesco, sem sede física em Porto Alegre.

Uma atendente que conversou com a reportagem via WhatsApp explicou que toda a concessão de crédito seria feita por ali mesmo, no aplicativo de mensagens.

A informação de que o CPF era de outra pessoa não foi considerada empecilho: em pouco tempo a funcionária obteve os dados do aposentado, retornando com uma proposta de financiamento.

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Para concretizar o negócio, bastaria enviar pelo WhatsApp um comprovante de endereço e uma foto do rosto do beneficiário segurando o documento de identidade. O contrato seria remetido pelo WhatsApp pela BrCred, sendo necessário retornar com uma foto da página assinada. Golpistas com um aparelho celular na mão ou parentes mal intencionados, se valendo do anonimato da internet, podem negociar empréstimos em nome de aposentados, que ficarão com os abatimentos das prestações nos seus contracheques.

A atendente explicou como tinha acesso às informações:

— Nós trabalhamos juntamente com a base do INSS, é a mesma base. Os valores são exatos, a não ser que já tenha dado entrada em outro estabelecimento de algum valor e que não conste ainda no sistema, mas são valores exatos, não tem como alterar. Inclusive já são propostas pré-aprovadas pelo INSS. Tá bom? — assegurou a mulher, em áudio.

Além da informalidade, a BrCred fez consultas para um terceiro, o que é vedado. Pelas regras vigentes, um aposentado somente pode contrair crédito no Estado em que o benefício é pago, mas a BrCred tem sede em Roseira, interior de São Paulo, e não possui filial no Rio Grande do Sul.