A segurança pública no Brasil passa por um fenômeno no mínimo inusitado. Em pelo menos seis estados, que juntos concentram 50% da população do país, a proporção de mortes violentas inexplicadas vem subindo, enquanto os homicídios caem. Com base nos dados do Sistema de Informação de Mortalidade, gerenciado pelo Ministério da Saúde e referência para as políticas federais de combate à violência, o Correio constatou a situação no Rio de Janeiro,em São Paulo, em Pernambuco eem Minas Gerais, entre 2000 e 2009. Na Bahia e no Rio Grande do Norte, embora tanto a taxa de homicídios quanto a de óbitos por causa desconhecida tenham subido, as estatísticas são preocupantes. Especialistas apontam para duas direções: manipulação dos dados ou, na melhor das hipóteses, falhas sistêmicas que empurram as mortes violentas para a classificação nebulosa do “indeterminado”.
“Estatísticas fiéis são fundamentais para o planejamento da segurança pública. Se você tem um sistema incapaz de classificar corretamente as mortes violentas, independentemente das razões, fica difícil combater o problema”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que recentemente concluiu estudo sobre a taxa de óbitos por causa indeterminada no Rio. No levantamento, Cerqueira constatou que, a despeito de uma queda de 28,7% nos homicídios entre 2007 e 2009, o índice de mortes sem motivação subiu assustadoramente. De 10 óbitos inexplicados para cada 100 mil habitantes, em 2006, o Rio chegou a 22. Cinco é a média nacional, ano a ano decrescente, na lógica do aperfeiçoamento constante das estatísticas. Depois de contestar o levantamento, o Instituto de Segurança Pública fluminense revisou os números nesta semana, concluindo que a queda dos assassinatos deve ser bem menor: de cerca de 3,6% — e não quase 30% como o defendido até então.
O sociólogo Ignácio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), não tem dúvidas sobre a existência de uma falha grave no sistema de notificação das mortes no país — que começa com a certidão de óbito emitida pelos Institutos de Medicina Legal (IMLs). Em seguida, uma via do documento segue para as secretarias municipais de Saúde, onde profissionais qualificam, a partir dos dados do laudo cadavérico, melhor o óbito. Havendo necessidade, é preciso visitar o IML, colher mais informações para uso epidemiológico e, só assim, enviá-las ao Ministério da Saúde. “Os dados de referência para homicídio no Brasil e em outros países são o da Saúde. Trata-se da estatística mais confiável. Se fôssemos recorrer às polícias, estaríamos perdidos, pois cada um sistematiza de um jeito, não há padrão nem critérios”, diz Cano.
No DF, de acordo com os dados do Ministério da Saúde, a taxa de homicídios subiu de 33,5 para 33,8 por 100 mil habitantes entre 2000 e 2010, ao mesmo tempo em que a proporção de mortes violentas com intenção indeterminada decresceu de 1 para 0,4, também por 100 mil habitantes. “Nosso sistema de informação está muito avançado. As estruturas do IML de Brasília são muito diferentes de outros institutos país afora. Além disso, aqui temos outra vantagem, que é o tamanho da cidade. Estados grandes têm mais dificuldades com mortes no interior, o sistema fica pulverizado”, diz Galvão. Outra parte da responsabilidade, destaca Cerqueira, do Ipea, está na própria polícia, que, por falta de treinamento, desfaz cenas de crime, remove corpos sem o devido cuidado, negligencia a investigação. O índice nacional de homicídios solucionados, de acordo com diversos estudos, não chega a 10%.
Publicado em: Governo