Os médicos do Socorrão querem ser heróis e não anti-heróis!!!

Publicado em   18/ago/2013
por  Caio Hostilio

socorrãoEm conversa com alguns médicos da equipe cirúrgica do Socorrão I sobre o relato de uma médica que esteve num plantão daquela unidade de saúde, pude mensurar com maior clareza que esses médicos, na verdade, procuram salvar vidas, porém se tornam impotentes e até anti-heróis pela falta de equipamentos e condições de infraestrutura adequadas.

Dois estavam no dia do plantão da médica e confirmaram tudo o que ela dissera. Isso com maior detalhe sobre os que eles puderam salvar e aqueles que tiveram que morrer, mesmo sabendo que a maioria esmagadora não chegaria a óbito.

Por que os seres humanos perdem a sensibilidade e o amor a seu semelhante? Esquecendo que esse tenha sido dos dois mandamentos de Jesus o que tenha mais sentido para humanidade?

O que mais doe em tudo isso, ainda, é a falta de valorização desses médicos, que lutam contra eles mesmos para salvar vidas e sabem que não podem pela impotência que são submetidos.

Muitos acompanharam das minhas postagens sobre a farra com gratificações com os recursos do SUS, porém sequer tinham conhecimento que as gratificações desses médicos são de apenas R$ 250,00, sendo o mesmo valor dado ao faturista do hospital. Contudo, o que mais desanimam eles é não poder cumprir com seus juramentos!!!

Abaixo, o relato novamente da médica:

São 12:55. Estou apreensiva. É meu primeiro plantão no Socorrão I. São só 6h, digo para mim mesma. Só 6h. É uma espécie de mantra que repito a cada instante como se isso fizesse o tempo passar mais rápido e tornar seis horas menos do que parece ser. Na entrada encontro um colega de outro hospital; ele me ensina um caminho por dentro da parte administrativa para chegar ao centro cirúrgico. Fico aliviada, não vou ter que passar pelos corredores abarrotados de gente. O que os olhos não vêem…

Subo alguns lances de escada que vão dar exatamente nos corredores que tanto quero evitar. E lá me deparo com um paciente deitado em uma maca encostada na parede onde há um papel escrito com letras maiúsculas MACA 12. Olho para o lado e existe uma fileira delas; macas que viraram leitos fixos. Mas não há gritos, nem choro, nem reclamações. Todos estão resignados com a situação. Eu não.

Enfim chego ao meu setor, o centro cirúrgico(CC). Uma amiga me recebe e me leva até o repouso médico onde, enquanto troco de roupa, ouço o relato detalhado da atual situação. Ela está lá desde as 7h. Só uma cirurgia até agora; uma neuro, grave. Todas as outras 04 salas estão ocupadas com pacientes graves que foram operados na noite anterior. Todos entubados, respirando por aparelhos, pacientes de UTI, mas não tem vaga.

Lá fora, um jovem com apendicite aguda espera para ser operado. Faz-se então uma seleção e o paciente menos grave é retirado da sala de cirurgia e levado para o que seria a sala de recuperação pós anestésica (SRPA). Hoje é um misto de SRPA e enfermaria pois, como não há leitos no hospital, os pacientes ficam por lá até receberem alta ou morrerem. E a SRPA, que segundo o regulamento da ANVISA deveria ser uma área de acesso restrito com uso de roupas próprias, gorro e máscara, é aberta ao público no horário de visitas às enfermarias.

A sala cirúrgica desocupada é rapidamente arrumada para a apendicectomia. O paciente é colocado na mesa mas ainda não será agora que vamos tratar seu problema. Na hora da anestesia uma colega entra na sala e diz: “Não faz! Tem que tirar da sala porque tá subindo uma paciente grave! Parece que tá rebaixada, vai precisar entubar!” Respiro. OK. Mas não temos como retirar o paciente da sala porque a única maca que tinha foi levada às pressas para trazer a paciente grave. E o paciente da apendicite, apesar de ter entrado andando, agora mal consegue sentar porque está sedado. É preciso reverter o efeito do sedativo e ele é levado de cadeira de rodas para um leito improvisado na SRPA/enfermaria.

A paciente chega junto com um dos cirurgiões que está fazendo massagem cardíaca porque ela está sem pulso. Ela é prontamente entubada, monitorizada e ressuscitada mas seu estado é grave. Ela foi operada há dois dias. Parece-me que tinha um ferimento por arma branca na perna. Foi encaminhada para a UTI do Hospital Universitário (Dutra) após a cirurgia mas 48h depois ainda não haviam feito sua transferência e ela estava entre a vida e a morte. Precisa de infusão contínua de drogas vasoativas para manter a pressão em níveis mínimos necessários à vida mas sou avisada de que temos bombas de infusão mas não temos equipos para as mesmas. OK. Não tem problema. Vamos colocar no soro mesmo. A paciente se mantém grave. Alguém grita: “Entrou um esfaqueado!” e outro responde:”Mas como? Não tem sala para operar!”

Corro para ver o paciente. Ele tem um curatico no peito à esquerda e aparentemente não respira. Pego no seu pescoço e punho, não tem pulso. Tiro o curativo e vejo um corte de mais ou menos 3cm bem em cima do coração. “Chama o cirurgião! Rápido! Oxigênio! Material de entubação! Monitor! Rápido!” O paciente está tamponado. A facada foi no coração e o sangue que “vazou” impede o coração de bater e o pulmão de respirar. Não tem sala. Tudo é improvisado ali mesmo. No corredor. Tudo muito rápido. Ninguém está ali para brincadeiras. Em segundos o paciente é entubado, anestesiado e seu tórax é aberto expondo o coração que tem duas lesões e já voltou a bater.

O sangue jorra do seu peito e tudo se tinge de vermelho vivo. Ele já está sendo transfundido. Me impressiona o fato de que em meio ao caos, tudo funcione perfeitamente. Muita gente está ajudando. São 5 médicos, 2 enfermeiras, várias técnicas de enfermagem, maqueiros e até o pessoal da limpeza. Tivemos que tirar o monitor de um dos pacientes operados à noite que estava na sala próxima e trocá-lo por um incompleto porque não havia mais nenhum. Não tem foco nem aspirador, mas ninguém reclama. Estão todos empenhados em fazer o possível para salvá-lo. O sangramento diminuiu consideravelmente mas seu ferimento foi gravíssimo. Ele perdeu muito sangue. Estou ventilando o paciente à mão com um ambu e um cilindro de oxigênio porque estamos no corredor e não temos respiradores disponíveis. Meu braço dói mas não posso parar, o coração está sendo suturado.

Me sinto em um filme de guerra. Na verdade, em um hospital de campanha, em plena guerra. Só que não. Não estamos em guerra. Não existe nenhuma justificativa para essa situação. A população de São Luís já chegou a 1 milhão de habitantes mas ninguém, nenhum dos nossos governantes, se importou em aumentar o número de hospitais públicos. São os mesmos hospitais de 10 anos atrás. A única coisa que aumentou em todos foi o número de macas. São dezenas delas espalhadas por todos os corredores e salas. Todas lotadas, o tempo todo.

Conseguiram um leito com respirador na SRPA e a paciente que havia parado há pouco e continuava bem ruim foi levada para lá enquanto esperava sua transferência para o Dutra. A sala é rapidamente preparada, desta vez para receber o “esfaqueado” que ainda tem o tórax aberto e o coração exposto. Na sala, enquanto o tórax é fechado ele para e é ressuscitado mais duas vezes. A cirurgia termina e seu estado é crítico. Está fazendo arritmia cardíaca. Vai ficar na sala porque não tem vaga na UTI. Mas é bem provável que ele não resista.

Um paciente é deixado na porta do centro cirúrgico. Ele está inconsciente e respirando muito mal. Ninguém sabe dizer do que se trata. NÃO TEM SALA. Não vejo nenhum ferimento aparente e ele usa fralda, o que pode significar que já está há algum tempo no hospital. Preciso de oxigênio, monitor, material de entubação, sala. Ausculto seu pulmão, está em edema agudo. Estamos no corredor. Ouço alguém falar “Por que trouxeram para cá? Não é cirúrgico! Não tem sala!”. Algumas pessoas não se importam. Já se acostumaram com isso. Eu não. É meu primeiro dia e eu me sinto na guerra. Entro na primeira sala que vejo. O paciente que está na mesa é um jovem que sofreu um acidente e fez uma neurocirurgia pela manhã. Está grave mas estável. Não tem vaga na UTI p ele que respira por aparelho e está sedado. Coloco o outro paciente no canto da sala e enquanto não arranjam um monitor, divido o do jovem acidentado com ele. Começo a tratar seu edema de pulmão na esperança de que não seja preciso entubá-lo porque ainda não temos respirador para ele. Mas ele não melhora.

A essa altura, a equipe do SAMU já chegou para transportar a paciente até a UTI do Dutra mas já não há mais esperanças. Ela não resiste e morre ali mesmo. Tinha 35 anos.

Seu leito, após ser desocupado, é preparado para receber o paciente dispnéico. Acabo de descobrir que ele tem um tumor cerebral que está causando hipertensão intracraniana. Precisa ser operado mas não tem a vávula necessária para a cirurgia. Nem sala. Ele é entubado ali mesmo, ao lado do paciente da neuro. Uma colega comenta, com um riso nervoso, que em 20 anos de medicina nunca tinha visto dois pacientes ocuparem a mesma sala de cirurgia. Eu entendo. É porque ela nunca esteve na guerra. Nem eu.

Na outra sala, o paciente da facada acaba de fazer mais uma parada cardíaca. Dessa vez, sem volta. Acho que tem 40 anos. Os outros pacientes resistem bravamente. São 4. Todos precisam de UTI. Três deles fizeram neurocirurgia, um está com tétano. Todos em respiradores, sem ter para onde ir.

Lá fora, além do “rapaz da apendicite”, um eviscerado espera uma sala para ser operado. Meu mantra virou fumaça. Em menos de 6h muita coisa aconteceu. Minha cabeça está a mil. Penso tanto que não consigo nem falar. Penso nos políticos que governam nossa cidade e uma revolta sobe das minhas entranhas e fica entalada na garganta. Eles deviam estar aqui. Eles deviam ver isso. Mas eles não se importam. Simples assim. Nunca nenhum deles se importou. Só se interessam por supostas obras e melhorias quando é para desviar o dinheiro para encher seus bolsos. Me disseram que foram comprados vários aparelhos e monitores de última geração mas que, por algum motivo burocrático, não foram entregues. Ninguém se importa. Precisamos de mais leitos(não macas!), mais UTIs, mais dignidade para a população. São Luís não tem hospitais públicos. Tem depósitos de doentes. Eles são jogados lá, feito lixo e nenhum desses bandidos de colarinho branco se importa com isso.

No meio de todo esse descaso, porém, ainda florescem espíritos nobres. Nessas 6h que ali passei, pude ver o empenho e a dedicação de profissionais que não medem esforços para ajudar o próximo. Técnicos, enfermeiras, médicos, maqueiros, funcionários. Bravos soldados no campo de batalha, lutando uma guerra que nunca tem fim.

São 18:50, está terminando meu turno. Ainda estou atordoada. Preocupo-me com o paciente do edema de pulmão. Será que vão cuidar dele? Mas ele está estável. Tento me acalmar. O colega chega às 19h para o turno da noite. Faço um resumo da situação e desejo-lhe um bom plantão. Na porta do CC algumas pessoas conversam com uma técnica de enfermagem: _A barriga dele tá aberta! Ele não vai aguentar! Vai morrer! Tem que operar!

_ Estamos arrumando sala para ele, senhora.

Acho que estão falando do eviscerado. Meu coração se aperta. Peço para agilizarem e vejo o maqueiro sair com uma maca. Na antessala do CC vejo um paciente sentado em cadeira com um curativo no abdômen que ele segura com as duas mãos enquanto geme baixinho. Será que é ele?, penso. Mas está sentado! Nesse estado! Não pode ser… Não tem maca, lembrei. Faço uma oração silenciosa para que tudo fique bem com ele.

Vou para casa com meu tênis sujo de sangue e meus ombros caídos com o peso da luta. Não sou a mesma que entrou seis horas antes. Ninguém é, depois de voltar de uma guerra.

  Publicado em: Governo

4 comentários para Os médicos do Socorrão querem ser heróis e não anti-heróis!!!

  1. Lopes disse:

    Minha querida, não teria que lhe parabenizar quando refiro- me em relação a sua preocupação com o ser humano, em suas orações, haja vista que como seres humanos ser humanizado deveria ser um característica própria e isso falta em muitos de nos médicos, mas te deu meus parabéns pelo heroísmo, pela determinação e sobretudo pela coragem. Fico realmente revoltado quando vejo nos jornais a roubalheira dos políticos, eles não acreditam que o inferno exista; e nem acreditam em Deus. Coitado dos pobres, coitado dos pacientes que infelizmente só tem essa alternativa- hospitais públicos. Te garanto querida colega que se houvesse um investimento na atenção básica, na ESF, muitos leitos estariam sobrando para o atendimento aos pacientes em necessidade urgente. Onde vamos chegar? Não vejo luz no fim do túnel, estou muito pessimista…infelizmente . Enquanto isso, vamos fazendo o que é possível e as vezes o i possível. Que Deus proteja você!

  2. Said disse:

    Triste realidade que infelizmente tive que acompanhar por 03 anos! Valeu pelo desabafo….

  3. Amigo da Onça disse:

    Engano seu, quem dera os faturistas do hospital ganhar 250,00 a mais no salário, vivem com seus salários atrasados, atualmente a empresa deve 3 salários a esses heróis…. fazer milagre de barriga vazia não é fácil!!!!

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