Nos 90 anos do PCdoB, Sarney relembra os muitos amigos militantes e ressalta: o comunismo é uma idéia generosa

Publicado em   27/mar/2012
por  Caio Hostilio

Permitam-me falar da minha longa proximidade com o Partido Comunista.

Primeiro quero registrar um momento histórico. Quando assumi a Presidência da República nos dias da tragédia de Tancredo Neves, eu vinha de um acordo entre o PMDB e uma dissidência que se formara no PDS, partido que apoiava o regime militar. Eu representava, no imaginário de muitos políticos, aquele regime, sem que se examinassem minhas motivações e compromissos. Na ausência de Tancredo, portanto, a primeira coisa que eu precisava fazer era me legitimar. Tancredo tinha tempo para tomar as medidas de redemocratização do País, eu não. Assim, ao mesmo tempo que assegurava um funcionamento mínimo da máquina administrativa, eu tomava iniciativas como convocar eleições diretas para os últimos municípios em que havia prefeitos nomeados. Na linha da minha legitimação, recebi no Palácio do Planalto a bancada de onze deputados do comunistas, e João Amazonas. A presença dos líderes comunistas eram uma sinalização mais forte que qualquer medida legal que seria, pela própria natureza parlamentar, de demorada execução. Encerrávamos, com uma fotografia, a questão da legalização dos partidos chamados clandestinos, objeto de grande discussão e reação dos militares, que obrigara Tancredo Neves na campanha a dizer que este era um problema “da justiça e não do Poder Executivo”.

Mas minhas relações com os comunistas vêm de minha infância. Eu morava em Codó quando ali chegou Maria Aragão, a combativa chefe do Partido Comunista no Maranhão, de quem fui depois grande amigo e a quem fiquei ligado por laços de família — Roberto, irmão de Marly, minha mulher, foi casado com uma filha dela, minha comadre Simone.

Pois eu era menino e Maria Aragão chegou a Codó, não sei para quê. O certo é que o nosso colégio foi convocado, com todos os outros colégios da cidade, as irmandades religiosas com seu paramentos e flâmulas, para recebê-la. Quando ela saltou, todos entoaram o hino religioso da “Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria”, com o “a treze de maio, na cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria…” E assim a acompanhamos até a pensão onde ia hospedar-se. Diziam então que, comunista, ela era contra Deus e a Igreja.
Eu era ainda menino quando aconteceu uma história com minha mãe. Meus primos Hilton e Newton pertenciam à Aliança Libertadora no Maranhão. Foram presos e deportados. Antes meus primos foram com dois sacos nos quais estava o material de propaganda — com bandeiras com a foice e martelo — para escondê-lo na nossa casa, possível prova contra eles que poderia ser apreendida pela polícia. Escolheram a nossa casa porque era a casa do Promotor Público de São Luís. Minha mãe ficou muito assustada. Depois de algum tempo, quando as coisas serenaram, outros militantes foram na nossa casa pedir que minha mãe devolvesse os arquivos da Aliança Libertadora Nacional. Qual não foi a surpresa deles quando minha mãe disse que ficara tão assustada e com medo que no dia seguinte queimara tudo. Foi assim que foram destruídos os arquivos da Aliança Libertadora no Maranhão.

Outro primo, Milton Lobato, que morreu, nonagenário, em 2004, foi para o Rio, onde foi médico de Prestes e vereador pelo Partido Comunista, quando da redemocratização de 1945.

Uma terceira lembrança da infância de ligação minha com o Partido Comunista é a de minha professora, Mãesinha Mochel, da tradicional família Mochel, de conhecidos idealistas e esquerdistas. Minha professora veio a ser a Chefe do PC no Maranhão. Era uma criatura muito boa e excelente professora. Não quis ensinar-me marxismo…

Mas no fim da adolescência eu já estava na política. Tinha minha opinião sobre o Maranhão, sobre o Brasil, discutia com a minha geração nossas idéias. Depois da guerra, a grande novidade era a pregação comunista. Começaram a surgir jornais e a militância mais antiga do PC recomeçava a atuar. Na clandestinidade todos os partidos desaparecem. Só permanecem aqueles que nada têm a perder, que vivem de suas próprias idéias. Entre eles, os mais exaltados e os mais convictos. Quando a liberdade aparece só eles existem no campo da contestação. Essa era a novidade do meu tempo de juventude. Como minhas inclinações eram contra Getúlio e o PC ficara com Getúlio, fiquei de pé atrás com ele. Mas passei a ter grandes simpatias pelas idéias marxistas. O comunismo era uma idéia generosa.

Não tive de, nem estava a meu dispor, nem tinha idade para tanto, ler O Capital nem os livros de doutrina maiores. A minhas mãos chegavam os livros de divulgação, àquele tempo didáticos, que tinham por base fundamental o Manifesto Comunista publicado por Marx e Engels. Princípios do Comunismo era um manual de perguntas e respostas, muito claro e elucidativo, que começava por dizer que era “a doutrina de libertação do proletariado”. Era difícil, jovem, fugir daquela utopia da igualdade, que seria conseguida com “a dominação política do proletariado” e “a produção deixará de ser fruto da concorrência, para estar toda ela em mãos da sociedade”, trazendo uma sociedade justa, todos tendo segundo suas necessidades.

Bandeira Tribuzzi — pseudônimo de José Ribamar Pinheiro Gomes —, um dos cinco maiores amigos que tive em minha vida, tinha chegado de Portugal. Seu pai, velho comerciante português do Maranhão, ia à missa das cinco horas da manhã na Igreja do Carmo, para depois ir abrir seu armazém. Mandou Tribuzzi para um seminário franciscanoem Portugal. Eleo cursou e a ele deveu seu sólido conhecimento de humanidades. Um dia Tribuzzi não aguentou mais ser frade, fugiu para Paris e ali desapareceu. Depois de dois anos, seu pai conseguiu recambiá-lo para São Luís e colocou-o a trabalhar no Armazém Pinheiro Gomes. Da Europa trouxe suas ideias marxistas. Entrou a doutrinar-me. Tudo me parecia muito correto, fascinante, mas tinha um ponto que me afastava. Era o tema religioso.

Eu acreditava em Deus, era extremamente religioso, católico praticante, tinha uma noção cristã do pecado, enquadrado nas minhas regras, e de repente caía como um terremoto dentro de mim negar essas crenças. Tínhamos imensas discussões. Eu estava a favor de tudo que pregava, mas para mim tudo que ele desejava já estava concebido pelo catolicismo: a pobreza, a caridade, a mortificação, o amor pelos pobres, o amor ao próximo, enfim meu catecismo. Tribuzzi me contradizia e me dizia que a noção de família que nós tínhamos era a noção burguesa em que os filhos eram explorados pelos pais; a mulher, objeto da produção. Ele era um poeta, de uma placidez extraordinária, mas quando discutia tomava-se de uma possessão santa.

No desdobramento da minha doutrinação, Tribuzzi deu-me a ler o livro de Jorge Amado — que mais tarde a vida me daria o privilégio de também ter como amigo —, O Cavaleiro da Esperança. Achei o livro fascinante. Ele me deu enrolado num papel de embrulho, com prazo fixo de uma semana para ler e depois devolvê-lo para outros que estavam sendo aliciados. Comovi-me com ele e acompanhei a história da Coluna de cujos dissolvidos machados de pedra eu ouvira na minha peregrinação pelo interior. Li a esse tempo também o ABC de Castro Alves. Cheguei bem perto de entrar para o PC.

Havia o antecedente de meus primos e de um ramo de nossa família. Afastou-me a religião. Àquele tempo o comunismo estava muito associado ao ateísmo. “A religião é o ópio dos povos.”

Eu e Tribuzzi estivemos juntos pelo resto da vida. Ele, com suas idéias, eu com as minhas. Concordando com tudo que queria o comunismo, mas não admitindo essa face

religiosa que me marcou e marca a vida inteira.

Governador do Maranhão, em plena vigência do regime militar, fiz de Tribuzzi meu principal auxiliar. Sem ele muito do que realizamos seria impossível. Resisti a todas as pressões para afastá-lo.

Conto tudo isso para registrar que tenho uma longa admiração pelos ideais comunistas e sempre tive entre meus maiores amigos comunistas militantes. Isso porque, como já disse, identifico no comunismo uma ideia generosa, a da igualdade entre os homens, que nos aproxima da justiça social. E essa ideia tem a capacidade de abrir os corações, rompendo com os interesses pessoais para fazer prevalecer o interesse da humanidade.

A história do Partido Comunista do Brasil é longa e rica de valores, de sacrifícios, de heroísmo. Outros falarão dela com detalhes. Quanto a mim, dou um testemunho, o testemunho de uma longa convivência e de uma visão destes valores maiores entre grandes amigos e eminentes políticos.

Secretaria de Imprensa da Presidência do Senado Federal

  Publicado em: Governo

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